domingo, outubro 24, 2010

Darcy Ribeiro

O Brasil cresceu visivelmente nestes oitenta anos. Cresceu mal, porém. Cresceu como um boi mantido, desde bezerro, dentro de uma jaula de ferro. Nossa jaula são as estruturas sociais medíocres, inscritas na Constituição e nas leis, para compor um país da pobreza na província mais bela da Terra. Se continuarmos sob a vigência destas leis, no Brasil do futuro a maioria da gente nascerá e viverá nas ruas em fome canina e ignorância figadal, enquanto a minoria rica, com medo dos pobres, se recolherá em confortáveis campos de concentração, cercados de arame farpado e eletrificado. Entretanto, é tão fácil nos livrarmos dessas teias, e tão necessário, que dói nossa conivência culposa. Vamos passar o Brasil a limpo, companheiros.

(Extraído de: RIBEIRO, Darcy. Aos trancos e barrancos: como o Brasil deu no que deu. 3. ed. Rio de Janeiro: Guanabara Dois, 1986).
Citação obtida em http://informaticacidadania.blogspot.com/2010/08/ditadura-militar-parte-12.html

sexta-feira, outubro 15, 2010

Por que vou votar na Dilma Rousseff

No segundo turno uma coisa é certa: um presidente será escolhido. Esse apelo para o óbvio é para mostrar que não adianta votar nulo para bancar o idealista, o revoltadinho. Idealismo e revolução se faz nas ruas, e não nas urnas.

Para este segundo turno, temos duas candidaturas: Dilma e Serra. No aspecto econômico, os dois são muito semelhantes. Não farão grandes mudanças nas taxas de juros, jogarão o jogo dos empresários e banqueiros e se esforçarão para controlar a inflação.

Temas como aborto, união civil de homossexuais (ou homoafetivos) e legalização das drogas, são irrelevantes agora. Foram temas importantes na hora de escolher os parlamentares, pois é do Congresso Nacional, e não do Planalto, que sai a decisão. Presidente pode tomar a iniciativa ou talvez vetar, mas a palavra final é dos parlamentares que já escolhemos. Então são discussões que, pra mim, ficaram para trás.

No quesito ética, imagino que os dois até podem ter boa vontade, mas é impossível saber o que se passa em toda a extensão da máquina pública. Então o que pesa nesse aspecto é a postura que adotam quando se descobre a corrupção. E nesse ponto, as investigações ocorridas no governo atual pareceram ser mais transparentes e dotadas de mais autonomia do que na era FHC. No governo atual os mecanismos de controle foram fortalecidos e foi criado o portal da transparência. Nada extraordinário, mas muito melhor do que negar, omitir e engavetar os processos.

Apesar de o governo anterior ter seus méritos por alguns avanços, como a estabilidade monetária e a Lei de Responsabilidade Fiscal, foi marcado também pelo neoliberalismo, com a política de enfraquecimento do Estado, privatização de estatais estratégicas e uma abertura perigosa do mercado.

Já o governo atual conseguiu tirar mais pessoas da miséria, deu mais atenção à educação (lembre-se que FHC vetou a inclusão de filosofia e sociologia no Ensino Médio e elas somente retornaram no governo atual) e inegavelmente fez mais concursos públicos, fortalecendo o Estado.

O governo atual teve coragem de negociar com países e, embora não seja uma potência militar e nem econômica, exerce liderança moral. Os Estados Unidos tentam implantar a todo custo a política neoliberal, mas a verdade é que intervêm na economia e oferecem subsídio à sua produção, coisa que somente o governo atual percebeu e teve coragem de denunciar.

No cenário atual, portanto, eu não vejo Dilma e Serra. Vejo PT e PSDB. Vejo de um lado um PT um pouco mais nacionalista, tentando reduzir a pobreza sem mexer com interesses, e de outro lado, um neoliberalismo escancarado e irresponsável do PSDB/DEM (PFL), disposto a sacrificar toda a população em torno de uma ilusão de progresso, que na verdade só trará benefícios a uma elite.

Por isso, meu voto no segundo turno é Dilma.

terça-feira, outubro 12, 2010

Na esquerda, a primeira vez é sempre a última chance...

Sempre que o discurso se desloca um pouco para a esquerda o interlocutor pergunta por Cuba como quem dá o golpe de misericórdia na conversa, como se fosse o xeque-mate. Isso acontece por dois motivos: primeiro porque tem um conceito tipicamente burguês de progresso, isto é, a idéia de que uma sociedade moderna é aquela onde alguns poucos dispõem de todo conforto e todo aparato tecnológico, mesmo que a imensa maioria sobreviva na mais profunda miséria. Então nenhuma diferença faz para o capitalista, que todas as crianças de Cuba estejam na escola, se não existir uma elite gozando do todo o luxo que o dinheiro pode comprar. Para essas mentes, São Paulo é bem sucedida por ter a terceira maior frota de helicópteros do mundo, e simplesmente não importa que o restante da população esteja se amontoando em favelas.

A segunda razão, intimamente ligada com essa noção de progresso, é que, para os liberais, que se auto-denominam detentores exclusivos da democracia, a miséria existente no capitalismo é perfeitamente explicada por algumas variáveis complexas e o mundo inteiro pode se tornar um laboratório para esse regime funesto. Entretanto, se o socialismo “falha” em dois ou três países, é o suficiente para demonstrar que ele não passa de uma utopia retrógrada, violenta e fracassada. Então, o que temos é um hemisfério inteiro passando fome para sustentar um modelo porque a experiência cubana está aí para demonstrar que não se pode sonhar com o contrário.

A miséria existente nas economias liberais representa apenas uma pequena necessidade de “ajustes”. Então os teóricos se encarregam de buscar outras explicações que na sua ótica nada têm a ver com o capitalismo, como a corrupção e baixa escolaridade. Cometem, ao que parece, a falácia da inversão das causas. O fracasso escolar é para eles a causa da desigualdade, e não conseqüência de um modelo em que filhos de ricos vão para uma escola repleta de recursos enquanto filhos de pobres dividem seu tempo entre escolas sucateadas e os semáforos.

Um dos argumentos é de que não adianta Cuba ter uma boa educação se esta não é capaz de transformar a vida das pessoas, de promover o salto necessário para desfrutar dos seus méritos. Resultado disso é que o médico é obrigado a comer da mesma comida que seus pacientes comem e ver seu filho estudando na mesma escola que o filho do gari estuda. Isso sim é um absurdo inaceitável em uma sociedade liberal. Nesse pensamento também se encontra um dos paradigmas mais protegidos pelo capitalismo: o de que deve existir uma recompensa para quem faz a adesão e garante sua inclusão no sistema, isto é, o acesso a um consumo diferenciado. Essa é a ideologia que coloca o liberalismo em perfeita harmonia: é por essa razão que no liberalismo não existe escândalo em usar seu helicóptero para evitar os pedintes de sinais.

E há quem defenda essa lógica.

sábado, outubro 09, 2010

Política externa tucana

No debate presidencial exibido pela Record, a primeira pergunta do candidato tucano José Serra foi dirigida ao socialista Plínio, numa clara provocação à política de Lula.
- Qual sua opinião sobre a política externa do governo Lula?
Prínio respondeu que era uma política megalomaníaca de Lula querer resolver problemas no Haiti, Honduras e Irã. Porque cada país deve saber qual seu lugar na política internacional e que tudo o que o Brasil havia feito foi desfeito imediatamente pelos Estados Unidos.
Empolgado com a resposta, e querendo aproveitar o entusiasmo para continuar os ataques ao presidente Lula, José Serra falou que era ruim para o Brasil manter amizades com países que não respeitam os direitos humanos, e aparecer ao lado de ditaduras como o Irã, que claramente está na corrida para produzir uma bomba nuclear.
Para surpresa ou decepção do tucano, Plínio, em meio a aplausos da platéia incontida, respondeu algo assim:
- Ora, mas nós temos negócios com os Estados Unidos. Quer país para causar mais problemas com direitos humanos que os Estados Unidos? E nós mantemos negócios com eles! Além disso, ninguém deve ter bomba atômica! Mas se os Estados Unidos têm bomba atômica, se Israel tem bomba atômica, porque o Irã não pode ter? é preciso acabar com essa hipocrisia!
Apesar de ter saído das eleições como mais um candidato excêntrico, nenhum expressou com tanta lucidez o pensamento de brasileiros indignados, brasileiros que não partilham desse engodo, dessa ditadura ideológica imposta pelo imperialismo americano e reproduzido pela mídia com ar intelectualismo, forçando a sociedade a acreditar em um maniqueísmo onde, de um lado, representando as forças do bem estão os Estados Unidos e, do outro, o império do mal do oriente.
Segue, sem comentários para a foto, para vergonha nacional e deboche internacional, o que os tucanos chamam de política externa.

sexta-feira, outubro 08, 2010

De toda a estrutura capitalista, nenhuma parece ser tão difícil de derrubar como o entorpecimento que ele causa nas pessoas. E parece também que em nenhum ponto é tão frágil quanto esse. De fato, as crises financeiras se sucedem e um abismo cada vez maior separa os ricos dos pobres dilacerando o meio ambiente e as pessoas, o que gera revolta e indignação, mas o capitalismo nunca é colocado sob suspeita, e continua a ser o “falo” na vida das pessoas. O seu grande triunfo está, portanto, na cegueira e na paralisia a que submete as pessoas.
As instituições conseguiram convencer as pessoas de que o capitalismo é um sistema justo, democrático, e progressista. Justo porque dá igualdade de oportunidade a todos. Não é à toa que chamamos os EUA, arautos do capitalismo, de “terra da oportunidade”. Democrático porque as pessoas vão às urnas escolher seus representantes. Progressista porque usando a meritocracia como bandeira, anunciam uma competição “saudável”, motivadora, que funciona como força motriz do desenvolvimento.
Resultado disso é que o socialismo está sempre associado à preguiça, tirania, e ao atraso. À preguiça porque se todos vão ter espaço, não há razão para o esforço. À tirania porque divulga-se que a repressão e a violências são atributos próprios do comunismo. E ao atraso porque, numa sociedade preguiçosa onde as mentes brilhantes não são de alguma forma recompensadas, não há razão para sair da roça.
Começamos o texto afirmando enfaticamente que a cegueira é a grande arma do capitalismo. Assim afirmamos porque não parece razoável que as pessoas concordem em trabalhar para sustentar os salários megalomaníacos de top models e jogadores de futebol se não existisse uma poderosa estrutura de entorpecimento do trabalhador que o conduz a aceitar esse tipo de situação.
Acontece que o trabalhador não percebe que quando compra aquele tênis em várias prestações, está, na verdade, financiando esses impérios. Ora, nada justifica que um produto que tem baixo custo chegue às prateleiras custando tanto. Tentemos remontar o caminho da exploração.
Primeiro, a matéria prima é obtida ao custo financeiro mais baixo possível. São matérias obtidas da extração e da exploração de riquezas naturais e de pessoas. Daí eu ter usado a expressão custo financeiro, porque é uma questão que custa menos dinheiro ao empresário, mas que tem um alto e irreparável custo para os trabalhadores e para o meio ambiente.
Em seguida, na fase de produção, novamente o trabalhador é explorado, suportando pesadas jornadas de trabalho para sustentar sua família. A baixa educação presta serviço ao capitalismo, no sentido de que provém a este uma reserva de mão de obra, o que se resume nas palavras “se você não quer, existe outro que quer”, obrigando o empregado a se submeter a qualquer condição de trabalho, como única forma de sustentar a família.
Fazem os empresários a população acreditar que o elevado preço final dos produtos se deve aos impostos. Novamente o capitalismo cega as pessoas, que mesmo inseridas nessa perversidade, defendem o regime que os esmaga, e repetem os discursos burgueses, de que os impostos é que atrapalham o desenvolvimento. Assumem o risco de perderem escolas, hospitais e outros serviços públicos se uma redução de impostos lhes abrirem as portas para o consumo.
Mas... um momento... precisamos ver aqui, além dos impostos, o que encarece os produtos. Ora, é claro que os produtos precisam refletir os altos ganhos dos empresários desde a produção até o comércio, passando por inúmeros de atravessadores. E aqui ainda existe embutido o salário milionário que concordamos, sim, concordamos, em pagar para as estrelas. Então vamos encarecer um pouco o produto porque precisamos (o que, no capitalismo, é uma regra) pagar o anunciante da marca e os artistas que aparecerão nos comerciais. E os comerciais são caros, porque é deles que os monopólios televisivos arrecadam os recursos para pagarem salários astronômicos aos apresentadores, atores, produtores de novela, etc. Além disso, o jogador-astro que aparece no comercial do tênis também precisa de salário cada vez maior.
O capitalismo ainda nos obriga a admirar essas pessoas, e a nos identificarmos com elas, mas o grande golpe do capitalismo é fazer isso sem que o trabalhador perceba que está pagando seus altos salários.
Resultado disso é que nós, brasileiros, temos orgulho de terem nascido aqui as modelos mais bem pagas do mundo e também os jogadores de futebol mais bem pagos do mundo. Temos orgulho e admiração por eles, mas odiamos o Estado por causa do salário mínimo vergonhoso! Odiamos o Estado por causa dos impostos esmagadores e juros abusivos! Outro dia ouvi dizer que a gasolina seria muito mais barata se não existisse tantos impostos! Quando se fala em imposto no combustível, facilmente um grupo defende reforma tributária. Mas até hoje nunca vi nenhum desses prejudicados falar em reduzir o preço da soja, do trigo ou do feijão.
Mas porque repudiamos tanto os impostos e ao mesmo tempo aceitamos pagar esses salários às nossas celebridades? Essa é a pergunta que pode minar de vez com o capitalismo.
Revoltamo-nos porque há filas nos hospitais, porque os medicamentos são caros, porque não há creche para as crianças e porque as escolas não são dignas, existindo apenas para manter esse entorpecimento. Mas não causa indignação nenhuma um jogador de futebol, um artista, uma modelo ou um apresentador receber salários de 3 milhões de reais por mês num país em que a maioria da população vive de salário mínimo.
Um sistema assim não pode ser justo, porque concentra toda a renda na mão de poucos. Não é democrático, porque as pessoas vão às urnas, mas não participam da riqueza, não usufruem do próprio trabalho, são excluídas da renda, da comida, da educação e da informação. E, finalmente, não é progressista, porque tem uma visão pobre de modernidade. Pensam que a modernidade é ter uma minoria desfrutando de eletrônicos de ultima geração, transporte luxuoso, mesmo que crianças estejam abandonadas nas ruas. Isso é atraso. A diferença entre ricos e pobres no Brasil chega a ser maior do que a diferença entre o suserano e os vassalos na idade medieval.
Mas o capitalismo um dia vai minar. E não vai ser por um colapso, nem por uma crise financeira mundial. Não é porque vai ser superado e nem por ser modificado por um economista brilhante. Ele vai minar porque os trabalhadores não admirarão mais esses astros que vivem às nossas custas. Porque o cidadão vai se cansar de trabalhar para sustentar esses salários. Porque as grifes e as marcas deixarão de ter mais importância do que a dignidade e a decência. Vai minar e vai cair às ruínas porque os monopólios vão cair. Porque o trabalhador vai deixar de comprar o tênis caro, e o dinheiro do trabalhador vai deixar de ser dissipado para sustentar a excentricidade de uma minoria.
Assim como as pessoas hoje se incomodam com os casacos de pele, com o desmatamento e com a poluição, causará incômodo também pessoas vivendo no luxo às custas dos pobres. Causará incômodo também a concentração da renda.
E, finalmente, quando houver justiça e distribuição de renda, nós nos lembraremos do capitalismo como nos lembramos das cruzadas, da mesma forma como nos lembramos do holocausto, ou do acidente da cápsula de césio em Goiânia.