De toda a estrutura capitalista, nenhuma parece ser tão difícil de derrubar como o entorpecimento que ele causa nas pessoas. E parece também que em nenhum ponto é tão frágil quanto esse. De fato, as crises financeiras se sucedem e um abismo cada vez maior separa os ricos dos pobres dilacerando o meio ambiente e as pessoas, o que gera revolta e indignação, mas o capitalismo nunca é colocado sob suspeita, e continua a ser o “falo” na vida das pessoas. O seu grande triunfo está, portanto, na cegueira e na paralisia a que submete as pessoas.
As instituições conseguiram convencer as pessoas de que o capitalismo é um sistema justo, democrático, e progressista. Justo porque dá igualdade de oportunidade a todos. Não é à toa que chamamos os EUA, arautos do capitalismo, de “terra da oportunidade”. Democrático porque as pessoas vão às urnas escolher seus representantes. Progressista porque usando a meritocracia como bandeira, anunciam uma competição “saudável”, motivadora, que funciona como força motriz do desenvolvimento.
Resultado disso é que o socialismo está sempre associado à preguiça, tirania, e ao atraso. À preguiça porque se todos vão ter espaço, não há razão para o esforço. À tirania porque divulga-se que a repressão e a violências são atributos próprios do comunismo. E ao atraso porque, numa sociedade preguiçosa onde as mentes brilhantes não são de alguma forma recompensadas, não há razão para sair da roça.
Começamos o texto afirmando enfaticamente que a cegueira é a grande arma do capitalismo. Assim afirmamos porque não parece razoável que as pessoas concordem em trabalhar para sustentar os salários megalomaníacos de top models e jogadores de futebol se não existisse uma poderosa estrutura de entorpecimento do trabalhador que o conduz a aceitar esse tipo de situação.
Acontece que o trabalhador não percebe que quando compra aquele tênis em várias prestações, está, na verdade, financiando esses impérios. Ora, nada justifica que um produto que tem baixo custo chegue às prateleiras custando tanto. Tentemos remontar o caminho da exploração.
Primeiro, a matéria prima é obtida ao custo financeiro mais baixo possível. São matérias obtidas da extração e da exploração de riquezas naturais e de pessoas. Daí eu ter usado a expressão custo financeiro, porque é uma questão que custa menos dinheiro ao empresário, mas que tem um alto e irreparável custo para os trabalhadores e para o meio ambiente.
Em seguida, na fase de produção, novamente o trabalhador é explorado, suportando pesadas jornadas de trabalho para sustentar sua família. A baixa educação presta serviço ao capitalismo, no sentido de que provém a este uma reserva de mão de obra, o que se resume nas palavras “se você não quer, existe outro que quer”, obrigando o empregado a se submeter a qualquer condição de trabalho, como única forma de sustentar a família.
Fazem os empresários a população acreditar que o elevado preço final dos produtos se deve aos impostos. Novamente o capitalismo cega as pessoas, que mesmo inseridas nessa perversidade, defendem o regime que os esmaga, e repetem os discursos burgueses, de que os impostos é que atrapalham o desenvolvimento. Assumem o risco de perderem escolas, hospitais e outros serviços públicos se uma redução de impostos lhes abrirem as portas para o consumo.
Mas... um momento... precisamos ver aqui, além dos impostos, o que encarece os produtos. Ora, é claro que os produtos precisam refletir os altos ganhos dos empresários desde a produção até o comércio, passando por inúmeros de atravessadores. E aqui ainda existe embutido o salário milionário que concordamos, sim, concordamos, em pagar para as estrelas. Então vamos encarecer um pouco o produto porque precisamos (o que, no capitalismo, é uma regra) pagar o anunciante da marca e os artistas que aparecerão nos comerciais. E os comerciais são caros, porque é deles que os monopólios televisivos arrecadam os recursos para pagarem salários astronômicos aos apresentadores, atores, produtores de novela, etc. Além disso, o jogador-astro que aparece no comercial do tênis também precisa de salário cada vez maior.
O capitalismo ainda nos obriga a admirar essas pessoas, e a nos identificarmos com elas, mas o grande golpe do capitalismo é fazer isso sem que o trabalhador perceba que está pagando seus altos salários.
Resultado disso é que nós, brasileiros, temos orgulho de terem nascido aqui as modelos mais bem pagas do mundo e também os jogadores de futebol mais bem pagos do mundo. Temos orgulho e admiração por eles, mas odiamos o Estado por causa do salário mínimo vergonhoso! Odiamos o Estado por causa dos impostos esmagadores e juros abusivos! Outro dia ouvi dizer que a gasolina seria muito mais barata se não existisse tantos impostos! Quando se fala em imposto no combustível, facilmente um grupo defende reforma tributária. Mas até hoje nunca vi nenhum desses prejudicados falar em reduzir o preço da soja, do trigo ou do feijão.
Mas porque repudiamos tanto os impostos e ao mesmo tempo aceitamos pagar esses salários às nossas celebridades? Essa é a pergunta que pode minar de vez com o capitalismo.
Revoltamo-nos porque há filas nos hospitais, porque os medicamentos são caros, porque não há creche para as crianças e porque as escolas não são dignas, existindo apenas para manter esse entorpecimento. Mas não causa indignação nenhuma um jogador de futebol, um artista, uma modelo ou um apresentador receber salários de 3 milhões de reais por mês num país em que a maioria da população vive de salário mínimo.
Um sistema assim não pode ser justo, porque concentra toda a renda na mão de poucos. Não é democrático, porque as pessoas vão às urnas, mas não participam da riqueza, não usufruem do próprio trabalho, são excluídas da renda, da comida, da educação e da informação. E, finalmente, não é progressista, porque tem uma visão pobre de modernidade. Pensam que a modernidade é ter uma minoria desfrutando de eletrônicos de ultima geração, transporte luxuoso, mesmo que crianças estejam abandonadas nas ruas. Isso é atraso. A diferença entre ricos e pobres no Brasil chega a ser maior do que a diferença entre o suserano e os vassalos na idade medieval.
Mas o capitalismo um dia vai minar. E não vai ser por um colapso, nem por uma crise financeira mundial. Não é porque vai ser superado e nem por ser modificado por um economista brilhante. Ele vai minar porque os trabalhadores não admirarão mais esses astros que vivem às nossas custas. Porque o cidadão vai se cansar de trabalhar para sustentar esses salários. Porque as grifes e as marcas deixarão de ter mais importância do que a dignidade e a decência. Vai minar e vai cair às ruínas porque os monopólios vão cair. Porque o trabalhador vai deixar de comprar o tênis caro, e o dinheiro do trabalhador vai deixar de ser dissipado para sustentar a excentricidade de uma minoria.
Assim como as pessoas hoje se incomodam com os casacos de pele, com o desmatamento e com a poluição, causará incômodo também pessoas vivendo no luxo às custas dos pobres. Causará incômodo também a concentração da renda.
E, finalmente, quando houver justiça e distribuição de renda, nós nos lembraremos do capitalismo como nos lembramos das cruzadas, da mesma forma como nos lembramos do holocausto, ou do acidente da cápsula de césio em Goiânia.