quarta-feira, setembro 02, 2009

Considerações sobre a sociedade autônoma a partir das leituras de Freud e Castoriadis.
Thiago César


A proposta do pensador Cornelius Castoriadis é apresentar uma leitura inovadora da psicanálise e sua relação com a política. E de fato, inicia o seu texto Psicanálise e Política mencionando que os autores que relacionaram esses temas, em sua maioria, tiraram apenas conclusões pessimistas ou reacionárias, e não aprofundaram questões que fossem para além daquilo que o pai da psicanálise havia deixado.
Tenta-se dar a este texto a mesma estrutura encontrada em Castoriadis r, a começar pela exposição do que se entende por política, psicanálise e pedagogia e porque Freud chegou a se referir a elas como tarefas impossíveis. Em seguida um pequeno esboço acerca das relações existentes entre psicanálise, política e pedagogia, enfatizando suas diferenças quanto à finalidade, e, por fim, uma descrição do que vem a ser uma sociedade autônoma como alternativa razoável frente às civilizações heterônomas.
As considerações que tratam da dominação através do emprego de conhecimento dos processos psíquicos conduzem Castoriadis a ver na atividade política um sentido que indica um intento, um propósito, isto é, pressupõe nesse caso o uso desse conhecimento para atingir um fim específico.
Quanto à psicanálise, seu exercício não visa a atingir nenhum propósito previamente determinado. A análise não conduz a isso. Tampouco tem por objetivo suplantar o Id em função de uma racionalidade, uma vez que a humanidade é igualmente caracterizada pelos afetos e pelos desejos. Se, por exemplo, as pulsões sexuais fossem completamente suprimidas, sequer haveria continuidade dos seres humanos. A análise portanto, pode apenas ser elucidada como “por vir a ser”, mas nunca precisamente definida. O projeto de autonomia, “a nível de ser humano, é a transformação do sujeito de maneira que ele possa entrar nesse processo” (CASTORIADIS, 1992. p. 155). Assim, se podemos delinear um objetivo para a psicanálise, diremos que este é o projeto de autonomia. Enquanto na política há uma relação de dominação, na psicanálise, pela associação livre o paciente é que se torna o principal agente do processo. À atividade lúcida cujo objeto é a autonomia humana Castoriadis chama de práxis.
Quanto à pedagogia, esta tem por meta ajudar o recém-nascido a tornar-se um ser humano. E não se deve esperar que esse processo se complete: “começa na idade zero e ninguém sabe quando termina” (CASTORIADIS, 1992. p. 156). Seu objetivo é desenvolver a capacidade de aprender, descobrir e inventar, mas não significa que isso ocorra sem que haja o ensino propriamente. É nesse sentido que dois princípios se tornam fundamentais: o processo educativo deve visar a desenvolver ao máximo a atividade própria do aluno e deve mostrar a ele porque convém que determinado conteúdo seja aprendido.
Aliás, podemos entendê-la tanto de um ponto de vista psicanalítico quanto social-histórico. Da perspectiva psicanalítica, a educação tem, por assim dizer, um caráter humanizador. É um processo que busca o desenvolvimento máximo da capacidade reflexiva com a inibição mínima de sua imaginação radical. Mas do ponto de vista social-histórico a coisa parece caminhar em uma direção diametralmente oposta: a pedagogia procura educar o sujeito visando que este interiorize as instituições existentes. Ora, constitui uma aparente contradição que o sujeito desenvolva uma atitude propriamente reflexiva e, ao mesmo tempo, assuma para si o que a sociedade instituiu. O homem se vê diante de outros indivíduos cujos desejos se opõem aos seus. Tal situação somente resultaria em desordem, caso não houvesse repressões a determinados instintos.
Exatamente aqui identificamos a impossibilidade da psicanálise e da pedagogia: Como pensar uma autonomia do sujeito dentro de uma sociedade heteronômica? À política resta oferecer uma saída para essa aporia. Daí a razão de também ser uma tarefa “impossível”. A psicanálise lida com o encontro do sujeito com o seu “Eu concreto”, que é um produto social construído, nos termos de Castoriadis, “para funcionar num dispositivo social dado e para preservar, continuar e reproduzir esse dispositivo – isto é, as instituições existentes” (CASTORIADIS, 1992. p. 158). Fato é que essas instituições depois de criadas tornam-se fixas porque o tempo as consolida de sorte que são tidas como dadas desde sempre, seja pelos deuses, pela natureza ou pela razão. Enfim, o que importa ressaltar aqui é que a sociedade já não se reconhece criadora delas. Tomemos agora a seguinte definição dada pelo autor:
“chamo de autônoma uma sociedade que não somente sabe explicitamente que criou as suas leis, mas que se instituiu de tal maneira a liberar o seu imaginário radical e a ser capaz de alterar as suas instituições, graças à sua própria atividade coletiva, reflexiva e deliberativa” (CASTORIADIS, 1992. p. 159).

Cumpre aqui mencionar que Sigmund Freud outrora fizera uma análise , e se convenceu de que a religião presta desserviço à sociedade. Aqui temos um breve comentário nesse aspecto:
“Constituiria vantagem indubitável que abandonássemos Deus inteiramente e admitíssemos com honestidade a origem puramente humana de todas as regulamentações e preceitos da civilização” (FREUD, 1978. p. 116)

Freud havia também destacado a dificuldade de se atingir tal resultado, uma vez que a criança é de tal forma instruída, que, à época em que seu intelecto se desenvolve, essa forma de enxergar já se tornou inexpugnável.
A política é descrita por Castoriadis nesse momento como a atividade lúcida, cujo objetivo é a instituição de uma sociedade autônoma, isto é, um outro tipo de relação entre a sociedade instituinte e a instituída, entre as leis dadas e a atividade reflexiva. E partindo de uma analogia entre indivíduos e sociedade, a autonomia desta pressupõe a autonomia daqueles que a compõe. E a ligação entre essas duas dimensões é feita pela pedagogia.
A fim de em seqüência discorrer sobre o bloqueio do fluxo representativo, Castoriadis lembra que a socialização da psique passa pela aceitação de que seus desejos nucleares não podem ser realizados. Aproveitamos então para novamente remetermo-nos aos escritos freudianos, no intuito de mostrar como ocorre essa contenção. Acontece que está em consonância com a leitura psicanalítica a idéia de que habita no homem alguns instintos que são altamente nocivos à vida social. São comumente mencionados o canibalismo, o incesto e a ânsia de matar. Dificilmente conseguiríamos imaginar uma civilização em que essas pulsões não fossem energicamente censuradas. Numa sociedade sem normas, ou os homens se exterminariam mutuamente ou, quem sabe, uma única pessoa, mais especificamente um tirano, conseguiria ser irrestritamente feliz. Esses três instintos citados são habitualmente assumidos pelo homem civilizado de forma muito forte – sem considerar os neuróticos.
“Acha-se em consonância com o curso do desenvolvimento humano que a coerção externa se torne gradativamente internalizada, pois um agente mental especial, o superego do homem, a assume e a inclui entre seus pensamentos” (FREUD, 1978. p. 92)

Mas ainda muitos outros desejos possui o ser humano que não são internalizados e precisam ser constantemente vigiados. Somente para ilustrar, vale outro fragmento de Freud:
“Há incontáveis pessoas civilizadas que se recusam a cometer assassinato ou a praticar incesto, mas que não se negam a satisfazer sua avareza, seus impulsos agressivos, ou seus desejos sexuais, e que não hesitam em prejudicar outras pessoas por meio da mentira, da fraude e da calúnia, desde que possam permanecer impunes” (FREUD, 1978. p. 92)

Aqui estamos novamente diante da oposição autonomia versus heteronomia. O agir motivado pela aprovação ou evitado diante de coerção externa é heterônomo.
Pois bem. Retornando a Castoriadis encontramos de forma sucinta: “Queremos indivíduos autônomos, isto é, capazes de uma atividade refletida própria” (CASTORIADIS, 1992. p. 160). Como criar instituições cuja interiorização pelos indivíduos não limita, mas amplia a sua capacidade de se tornarem autônomos?
Freud imaginara que um possível uma reorganização da sociedade deveria passar pela reflexão continuada acerca da relação entre exercício da autonomia e mecanismos de repressão.
“Pensar-se-ia ser possível um reordenamento das relações humanas, que removeria as fontes de insatisfação para com a civilização pela renúncia à coerção e à repressão dos instintos (...) A questão decisiva consiste em saber se, e até que ponto é possível diminuir o ônus dos sacrifícios instintuais impostos aos homens, reconciliá-los com aqueles que necessariamente devem permanecer e fornecer-lhes uma compensação” (Freud, 1978. pp. 88, 89).

O que está por trás da questão de Freud é a fragilidade que envolve a sociedade heterônoma. O problema se assenta no fato de que as sociedades heterônomas estão sempre sustentadas num princípio de tal forma que se este for abolido, também tudo o mais que foi instituído inexoravelmente perecerá.
E para Castoriadis, o ponto chave é que os indivíduos são dominados pelas instituições sociais pela interiorização das significações imaginárias sociais. “A sociedade arranca o ser humano singular do universo fechado da mônada psíquica, força-o a entrar no mundo duro da realidade, mas em troca, ela lhe oferece sentido” (CASTORIADIS, 1992, p. 162).
Concluiremos, pois, acreditando estar em concordância com as leituras realizadas que através das vias psicanalíticas, políticas e pedagógicas pode-se chegar o momento, como Freud descreve, em que a sociedade pode reagir tal como um tratamento analítico, e substituir os efeitos da repressão pelos resultados da operação racional do intelecto, uma vez que ela pouco tem a temer das pessoas instruídas que trabalham com o cérebro.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CASTORIADIS, Cornelius. Psicanálise e Política. In O Mundo fragmentado: As encruzilhadas do labirinto III. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1992.

FREUD, Sigmund. O futuro de uma ilusão. São Paulo: Abril Cultural, 1978. (Coleção Os Pensadores).

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