sexta-feira, março 19, 2010

Deus comporta sentimentos?

O caráter antropomórfico atribuído a Deus constitui, talvez, a maior resistência encontrada pelo cristianismo. De fato, as escrituras apontam o homem como imagem e semelhança do Criador, e, reciprocamente, atribui a Deus características propriamente humanas. Assim, o que temos é uma divindade que vivencia e experimenta os mesmos sentimentos, angústias e aflições que acometem os homens. As escrituras apontam um Deus que ama, alegra-se, entristece-se, ira, dialoga, compadece, muda de opinião, enfim, enfrenta os mesmos sentimentos que os homens.
Ofereceremos algumas razões para se pensar o contrário, posto que uma análise da palavra paixão não pode ser aplicada sem prejuízos ao conceito de divindade, primeiro por uma contradição ontológica e segundo porque fere a noção de liberdade.
O termo paixão deriva do grego páthos, que em termos fundamentais representa o contrário de ação. Dessa forma, se você escreve em um caderno, sua ação é escrever, e a paixão do caderno é ser escrito. Igualmente, quando você agride alguém, sua ação é agredir, e a paixão da pessoa é ser agredida. Os sentimentos são, nesse sentido, paixões da alma, uma vez que somos acometidos por eles, porque os sentimos, como a própria palavra indica, e, portanto, não são ações, sim paixões, uma vez que somos afetados por eles. Não escolhemos amar, nem odiar. Não se marca data para amar alguém, nem se escolhe deixar de amar. Em outras palavras: não está no nosso controle.
Aqui reside o primeiro problema: como pode algo estar fora do controle de Deus? Como um ser onipotente se permite ser afetado por algo?
É necessário ressaltar que não estamos falando de um Deus mau, nem pretendemos tirar virtude alguma de Deus, pelo contrário, retirar a passividade de Deus é engrandecê-lo ainda mais, é exaltá-lo de forma mais plena, é reconhecer que nele não há sombra alguma de fraqueza e nem de privação. A noção de Deus não pode comportar nenhuma fraqueza, a grandeza e a potência de Deus não permite que ele esteja sujeito a nada. Deus é pura afirmação, puro poder. Reconhecer isso é reconhecer de forma mais elevada a sua plenitude. Ao negar as paixões, ao contrário de enfraquecê-lo, afirma-se Deus com mais vigor.
Nosso segundo argumento está no fato de que o conceito de liberdade somente pode comportar a indiferença. Não estamos falando da liberdade de agir, mas da plena liberdade para escolher entre uma coisa e outra, a liberdade fundamental que se exerce no âmbito da consciência. Um exemplo: Se um pai vê o filho refém de um seqüestrador, ele concretamente é livre para pagar ou não o resgate, mas alguém arriscaria dizer que ele é plenamente livre? Em qualquer situação em que um resultado é mais apreciável que outro, em que um resultado é mais desejado que outro, encontramos o mesmo dilema. Em outras palavras, não escolhemos as ações, escolhemos resultados. Não é difícil perceber que não somos livres para realizar a maioria das coisas. Mas se há situações em que somos realmente livres, são aquelas situações em que o resultado é indiferente. Para os estóicos, por exemplo, só é livre a pessoa para quem a saúde não seria mais desejável que a doença. Somente é livre aquele para quem o prazer não é mais importante do que a dor. Nesse sentido, aqueles que realmente conseguiam atingir esse ponto poderiam se afirmar como livres. Como Deus poderia ser livre se fosse tomado de paixões, de fraquezas, de desejos, de paixões? Novamente, ressalte-se que não estamos propondo um Deus monstro, um Deus frio, mas sim um Deus inatingível por natureza, um Deus que se revela em absoluta força, poder e liberdade em sua forma mais plena.
Não estamos com isso tirando o valor das escrituras, mas provocando uma reflexão, apontando para uma interpretação mais figurativa, afinal, um Deus tão grande não pode ser traduzido senão humanamente. É por isso que recorremos aos sentimentos humanos para falarmos de um Deus imensurável, inalcançável pelo pensamento.

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