domingo, março 28, 2010

A justiça foi feita?

Fogos soberbos enfeitam o céu de São Paulo. O casal Nardoni foi condenado à prisão. Nada a contestar, foi a vontade do júri diante das evidências e dos argumentos apresentados.

A condenação é apresentada pela mídia como o manjar da justiça, e a sociedade celebra a condenação como se tudo fosse mudar de agora em diante.
O fato é que centenas de crianças morrem a todo momento de desnutrição ou são condenadas ao trabalho escravo ou à prostituição.
Imagino que não muito distante do palco da justiça, algumas crianças se perguntam, entre uma pedra e outra de crack: "Justiça foi feita?". E se não têm lucidez para se perguntarem, eu pergunto: onde estão esses que fazem passeatas e protestos na hora de pedir uma distribuição de renda mais justa?
Acaso os fogos de artifício os ensurdeceram e já não ouvem mais tantas tripas clamarem?

Será que essas pessoas se perguntam se fazem justiça ao pagarem seus empregados? será que tratam os recursos naturais com justiça? será que tratam seus subordinados com justiça?

Essa reflexão é na verdade um convite a clamar para que se faça justiça também às crianças que não têm escola, que são condenadas ao trabalho escravo, à prostituição ou à marginalidade.

E também justiça com as próprias mãos, condenando os políticos corruptos, que assassinam crianças em massa todos os dias, tirando-lhes os livros, o pão e o futuro.

sexta-feira, março 19, 2010

Deus comporta sentimentos?

O caráter antropomórfico atribuído a Deus constitui, talvez, a maior resistência encontrada pelo cristianismo. De fato, as escrituras apontam o homem como imagem e semelhança do Criador, e, reciprocamente, atribui a Deus características propriamente humanas. Assim, o que temos é uma divindade que vivencia e experimenta os mesmos sentimentos, angústias e aflições que acometem os homens. As escrituras apontam um Deus que ama, alegra-se, entristece-se, ira, dialoga, compadece, muda de opinião, enfim, enfrenta os mesmos sentimentos que os homens.
Ofereceremos algumas razões para se pensar o contrário, posto que uma análise da palavra paixão não pode ser aplicada sem prejuízos ao conceito de divindade, primeiro por uma contradição ontológica e segundo porque fere a noção de liberdade.
O termo paixão deriva do grego páthos, que em termos fundamentais representa o contrário de ação. Dessa forma, se você escreve em um caderno, sua ação é escrever, e a paixão do caderno é ser escrito. Igualmente, quando você agride alguém, sua ação é agredir, e a paixão da pessoa é ser agredida. Os sentimentos são, nesse sentido, paixões da alma, uma vez que somos acometidos por eles, porque os sentimos, como a própria palavra indica, e, portanto, não são ações, sim paixões, uma vez que somos afetados por eles. Não escolhemos amar, nem odiar. Não se marca data para amar alguém, nem se escolhe deixar de amar. Em outras palavras: não está no nosso controle.
Aqui reside o primeiro problema: como pode algo estar fora do controle de Deus? Como um ser onipotente se permite ser afetado por algo?
É necessário ressaltar que não estamos falando de um Deus mau, nem pretendemos tirar virtude alguma de Deus, pelo contrário, retirar a passividade de Deus é engrandecê-lo ainda mais, é exaltá-lo de forma mais plena, é reconhecer que nele não há sombra alguma de fraqueza e nem de privação. A noção de Deus não pode comportar nenhuma fraqueza, a grandeza e a potência de Deus não permite que ele esteja sujeito a nada. Deus é pura afirmação, puro poder. Reconhecer isso é reconhecer de forma mais elevada a sua plenitude. Ao negar as paixões, ao contrário de enfraquecê-lo, afirma-se Deus com mais vigor.
Nosso segundo argumento está no fato de que o conceito de liberdade somente pode comportar a indiferença. Não estamos falando da liberdade de agir, mas da plena liberdade para escolher entre uma coisa e outra, a liberdade fundamental que se exerce no âmbito da consciência. Um exemplo: Se um pai vê o filho refém de um seqüestrador, ele concretamente é livre para pagar ou não o resgate, mas alguém arriscaria dizer que ele é plenamente livre? Em qualquer situação em que um resultado é mais apreciável que outro, em que um resultado é mais desejado que outro, encontramos o mesmo dilema. Em outras palavras, não escolhemos as ações, escolhemos resultados. Não é difícil perceber que não somos livres para realizar a maioria das coisas. Mas se há situações em que somos realmente livres, são aquelas situações em que o resultado é indiferente. Para os estóicos, por exemplo, só é livre a pessoa para quem a saúde não seria mais desejável que a doença. Somente é livre aquele para quem o prazer não é mais importante do que a dor. Nesse sentido, aqueles que realmente conseguiam atingir esse ponto poderiam se afirmar como livres. Como Deus poderia ser livre se fosse tomado de paixões, de fraquezas, de desejos, de paixões? Novamente, ressalte-se que não estamos propondo um Deus monstro, um Deus frio, mas sim um Deus inatingível por natureza, um Deus que se revela em absoluta força, poder e liberdade em sua forma mais plena.
Não estamos com isso tirando o valor das escrituras, mas provocando uma reflexão, apontando para uma interpretação mais figurativa, afinal, um Deus tão grande não pode ser traduzido senão humanamente. É por isso que recorremos aos sentimentos humanos para falarmos de um Deus imensurável, inalcançável pelo pensamento.

quarta-feira, março 10, 2010

A desordem do Progresso

Em nenhum outro país os ricos demonstraram mais ostentação que no Brasil. Apesar disso, os brasileiros ricos são pobres. São pobres porque compram sofisticados automóveis importados, com todos os exagerados equipamentos da modernidade, mas ficam horas engarrafados ao lado dos ônibus de subúrbio. E, às vezes, são assaltados, seqüestrados ou mortos nos sinais de trânsito. Presenteiam belos carros a seus filhos e não voltam a dormir tranqüilos enquanto eles não chegam em casa. Pagam fortunas para construir modernas mansões, desenhadas por arquitetos de renome, e são obrigados a escondê-las atrás de muralhas, como se vivessem nos tempos dos castelos medievais, dependendo de guardas que se revezam em turnos.

Os ricos brasileiros usufruem privadamente tudo o que a riqueza lhes oferece, mas vivem encalacrados na pobreza social. Na sexta-feira, saem de noite para jantar em restaurantes tão caros que os ricos da Europa não conseguiriam freqüentar, mas perdem o apetite diante da pobreza, que ali por perto, arregala os olhos pedindo um pouco de pão; ou são obrigados a ir a restaurantes fechados, cercados e protegidos por policiais privados. Quando terminam de comer escondidos, são obrigados a tomar o carro à porta, trazido por um manobrista, sem o prazer de caminhar pela rua, ir a um cinema ou teatro, depois continuar até um bar para conversar sobre o que viram. Mesmo assim, não é raro que o pobre rico seja assaltado antes de terminar o jantar, ou depois, na estrada a caminho de casa. Felizmente isso nem sempre acontece, mas certamente, a viagem é um susto durante todo o caminho. E, às vezes, o sobressalto continua, mesmo dentro de casa.

Os ricos brasileiros são pobres de tanto medo. Por mais riquezas que acumulem no presente, são pobres na falta de segurança para usufruir o patrimônio no futuro. E vivem no susto permanente diante das incertezas em que os filhos crescerão. Os ricos brasileiros continuam pobres de tanto gastar dinheiro apenas para corrigir os desacertos criados pela desigualdade que suas riquezas provocam: em insegurança e ineficiência.

No lugar de usufruir tudo aquilo com que gastam, uma parte considerável do dinheiro nada adquire, serve apenas para evitar perdas. Por causa da pobreza ao redor, os brasileiros ricos vivem um paradoxo: para ficarem mais ricos têm de perder dinheiro, gastando cada vez mais, apenas para se proteger da realidade hostil e ineficiente. Quando viajam ao exterior, os ricos sabem que no hotel onde se hospedarão serão vistos como assassinos de crianças na Candelária, destruidores da Floresta Amazônica, usurpadores da maior concentração de renda do planeta, portadores de malária, de dengue e de verminoses. São ricos empobrecidos pela vergonha que sentem ao serem vistos pelos olhos estrangeiros.

Na verdade, a maior pobreza dos ricos brasileiros está na incapacidade de verem a riqueza que há nos pobres. Foi esta pobreza de visão que impediu os ricos brasileiros de perceberem, cem anos atrás, a riqueza que havia nos braços dos escravos libertos, se lhes fosse dado direito de trabalhar a imensa quantidade de terra ociosa de que o país dispunha. Se tivessem percebido essa riqueza e libertado a terra junto com os escravos, os ricos brasileiros teriam abolido a pobreza que os acompanha ao longo de mais de um século. Se os latifúndios tivessem sido colocados à disposição dos braços dos ex-escravos, a riqueza criada teria chegado aos ricos de hoje, que viveriam em cidades sem o peso da imigração descontrolada
e com uma população sem miséria.

A pobreza de visão dos ricos impediu também de verem a riqueza que há na cabeça de um povo educado. Ao longo de toda a nossa história, os nossos ricos abandonaram a educação do povo, desviaram os recursos para criar a riqueza que seria só deles, e ficaram pobres: contratam trabalhadores com baixa produtividade, investem em modernos equipamentos e não encontram quem os saiba manejar, vivem rodeados de compatriotas que não sabem ler o mundo ao redor, não sabem mudar o mundo, não sabem construir um novo país que beneficie a todos. Muito mais ricos seriam os ricos se vivessem em uma sociedade onde todos fossem educados.

Para poderem usar os seus caros automóveis, os ricos construíram viadutos, com o dinheiro de colocar água e esgoto nas cidades, achando que, ao comprar água mineral, se protegiam das doenças dos pobres. Esqueceram-se de que precisam desses pobres e não podem contar com eles todos os dias e com toda saúde, porque eles (os pobres) vivem sem água e sem esgoto. Montam modernos hospitais, mas tem dificuldades em evitar infecções porque os pobres trazem de casa os germes que os contaminam. Com a pobreza de achar que poderiam ficar ricos sozinhos, construíram um país doente e vivem no meio da doença.

Há um grave quadro de pobreza entre os ricos brasileiros. E esta pobreza é tão grave, que a maior parte deles não percebe. Por isso, a pobreza de espírito tem sido o maior inspirador das decisões governamentais, das pobres ricas elites brasileiras. Se percebessem a riqueza potencial que há nos braços e nos cérebros dos pobres, os ricos brasileiros poderiam reorientar o modelo de desenvolvimento em direção aos interesses de nossas massas populares. Liberariam a terra para os trabalhadores rurais, realizariam um programa de construção de casas e implantação de redes de água e esgoto, contratariam centenas de milhares de professores e colocariam o povo para produzir para o próprio povo. Esta seria uma decisão que enriqueceria o Brasil inteiro. Os pobres que sairiam da pobreza e os ricos que sairiam da vergonha, da insegurança e da insensatez.

Mas isso é esperar demais. Os ricos são tão pobres que não percebem a triste pobreza em que usufruem suas malditas riquezas.

CRISTOVAM BUARQUE