terça-feira, maio 01, 2007


O motor principal e fundamental no homem, bem como nos animais, é o egoísmo, ou seja, o impulso à existência e ao bem-estar. [...] Na verdade, tanto nos animais quanto nos seres humanos, o egoísmo chega a ser idêntico, pois em ambos une-se perfeitamente ao seu âmago e à sua essência.
Desse modo, todas as acções dos homens e dos animais surgem, em regra, do egoísmo, e a ele também se atribui sempre a tentativa de explicar uma determinada acção. Nas suas acções baseia-se também, em geral, o cálculo de todos os meios pelos quais procura-se dirigir os seres humanos a um objectivo. Por natureza, o egoísmo é ilimitado: o homem quer conservar a sua existência utilizando qualquer meio ao seu alcance, quer ficar totalmente livre das dores que também incluem a falta e a privação, quer a maior quantidade possível de bem-estar e todo o prazer de que for capaz, e chega até mesmo a tentar desenvolver em si mesmo, quando possível, novas capacidades de deleite. Tudo o que se opõe ao ímpeto do seu egoísmo provoca o seu mau humor, a sua ira e o seu ódio: ele tentará aniquilá-lo como a um inimigo. Quer possivelmente desfrutar de tudo e possuir tudo; mas, como isso é impossível, quer, pelo menos, dominar tudo: 'Tudo para mim e nada para os outros' é o seu lema. O egoísmo é gigantesco: ele rege o mundo.

Arthur Schopenhauer, in 'A Arte de Insultar'

Foto: Leonardo Galvão

domingo, março 25, 2007

O existencialismo em Sartre e suas implicações morais.

1. Introdução

A primeira metade do século XX foi marcada pela eclosão de duas guerras que atingiram proporções mundiais. Lembrar esses fatos é suficiente para entender o que Voltaire tinha em mente ao afirmar que a história é “apenas uma série de crimes e desgraças”, mas o que eleva a pesquisa histórica é a sua capacidade de desafiar o homem a examinar sobre o que ela apresenta. E, de fato, foi refletindo sobre um mundo que se destrói que o existencialismo aparece, preocupado principalmente com o sentido da vida. Seus principais representantes são Jaspers e Gabriel Marcel, de confissão católica, e, entre os ateus, Sartre e Heidegger.

2. A existência precede a essência

O filósofo grego Platão, no séc. IV a.C. tenta resolver o problema da unidade e da multiplicidade sugerindo a existência de uma realidade transcendente, onde o ser se encontra na sua forma perfeita e imutável. Ele nos apresenta um modelo filosófico chamado Realismo, afirmando que as idéias universais constituem a realidade e que o mundo sensível é uma cópia imperfeita do Mundo das Idéias.

Com isso, Platão quer dizer que existe uma essência que precede a existência. Assim, se há, no mundo sensível, uma quantidade indefinida de homens, no mundo das idéias existe um conceito universal de humanidade, ou, “O Homem”. Para os realistas, os indivíduos são partes de um único ente, que subsiste no mundo das idéias como uma forma perfeita, uma matriz.

Posteriormente Aristóteles criticaria Platão por multiplicar os entes desnecessariamente. Para ele, o Ser está nos indivíduos, e as idéias são conceitos abstraídos. Se em Platão Lima Vaz identifica uma transcendência vertical, em Aristóteles teríamos uma transcendência horizontal. As idéias são, em Aristóteles, abstrações.

Na Idade Média houve defensores tanto do modelo platônico (Santo Agostinho), quanto do modelo Aristotélico (Santo Tomás). Tivemos também duras críticas à noção de que existe uma idéia por trás das coisas. O filósofo Guilherme de Ockham, por exemplo, ficou conhecido pela afirmação de que os entes não devem ser multiplicados desnecessariamente, a chamada “Navalha de Ockham”[1].

Assim, quando se afirma que a existência precede a essência, estamos fazendo uma oposição a toda afirmação de que existe um modelo de mundo. Isso significa que toda a nossa realidade simplesmente existe tal como é, e não existe nenhum parâmetro para ela, nem há modelo algum da qual ela participe. Em outras palavras, o ser não se fundamenta em nada e também não é fundamento de nada. Ou, como afirma Jean-Paul Sartre, “em primeira instância, o homem existe, encontra a si mesmo, surge no mundo e só posteriormente se define”.

O filósofo francês ainda lamenta que o existencialismo esteja desgastado em virtude de ser citado inadequadamente por modismo, e o define como “uma doutrina que torna a vida humana possível e que, por outro lado, declara que toda verdade e toda ação implicam um meio e uma subjetividade humana”.

Não há, então, segundo o existencialismo, uma natureza humana? No sentido transcendente, não. No entanto, os pensadores falam em condição do homem, ao invés de falar em natureza, entendendo por condição “o conjunto dos limites a priori que esboçam sua situação fundamental no universo”. Falemos, portanto, em universalidade do homem, não como algo dado, mas permanentemente construída.

Negar a existência de uma realidade que fundamente a existência traz profundas implicações metafísicas e epistemológicas, no entanto, serão suas implicações morais o objeto de nosso estudo.

3. Implicações morais

Sartre inicia o seu texto “O existencialismo é um humanismo” dizendo que o existencialismo ateu é mais coerente do que aquele defendido pelos cristãos. De fato, a perspectiva ateísta é mais clara, uma vez que é difícil conciliar Deus com um mundo que simplesmente existe. Talvez um dos primeiros a pensar nesse caminho tenha sido Nietzsche, anunciando a morte de Deus. Para ele, o homem ético é aquele que obedece aos valores impostos pelos fracos. O homem livre, no entanto, é aquele que se afirma criando os seus próprios valores. A existência é trágica e se resolve em si mesma. Com isso, Nietzsche reinsere o homem no mundo que não oferece subterfúgio.

Para os existencialistas, cabe ao homem dar sentido à sua vida. Não há resposta a priori para a existência. Os entes simplesmente existem, e não faz sentido perguntar por si mesmo.

No existencialismo o homem deve chamar para si a responsabilidade total de sua existência.

“Assim, quando dizemos que o homem é responsável por si mesmo, não queremos dizer que o homem é apenas responsável pela sua estrita individualidade, mas que ele é responsável por todos os homens (...) Ao afirmarmos que o homem se escolhe a si mesmo, queremos dizer que cada um de nós se escolhe, mas queremos dizer também que, escolhendo-se, ele escolhe todos os homens (...) por outras palavras: escolhendo-me, escolho o homem”.

Essa responsabilidade é tamanha, que Sartre chega a falar em angústia, desamparo e desespero. A angústia decorre diretamente da responsabilidade individual perante a humanidade. Isso quer dizer que o homem “não consegue escapar ao sentimento de sua total e profunda responsabilidade”. Assim, aquele que age pensando que está escolhendo apenas para si próprio não pode estar em paz com a consciência. As grandes decisões são tomadas em angústia, “mas isso não os impede de agir, muito pelo contrário: é a própria angústia que constitui a condição de sua ação, pois ela pressupõe que eles encarem a pluralidade dos possíveis e que, ao escolher um caminho, eles se dêem conta de que ele não tem nenhum valor a não ser o de ter sido escolhido”.

Falar em desamparo é “dizer que Deus não existe e que é necessário levar esse fato às últimas conseqüências”, o que elimina a possibilidade de quaisquer valores a priori, resultando num grande incômodo, principalmente pelo fato de o homem não encontrar desculpas para suas ações. Sendo mais direto: o homem é condenado a ser livre.

“Estamos sós, sem desculpas. É o que posso expressar dizendo que o homem está condenado a ser livre. Condenado, porque não se criou a si mesmo, e como, no entanto, é livre, uma vez que foi lançado no mundo, é responsável por tudo o que faz. O existencialismo não acredita no poder da paixão (...) Ele considera que o homem é responsável por ela. O existencialista não pensará nunca, também, que o homem pode conseguir o auxílio de um sinal qualquer que o oriente no mundo, pois considera que é o próprio homem quem decifra o sinal como bem entende. Pensa, portanto, que o homem, sem apoio e sem ajuda, está condenado a inventar o homem a cada instante”

Nesse sentido, o desamparo e a angústia caminham juntos, uma vez que ambos apontam para uma mesma realidade: o homem escolhe a si mesmo. Já o desespero significa que “só podemos contar com o que depende da nossa vontade ou com o conjunto de probabilidades que tornam a nossa ação possível”. Sartre prossegue mencionando que é preferível desinteressar-se das possibilidades que não estão diretamente envolvidas com as nossas ações, pois, uma vez sendo o homem livre, não se pode contar com a bondade humana naquilo que não está ao seu alcance, podendo o homem contar apenas com aqueles que estão num engajamento comum.

E quando Sartre fala em levar às últimas conseqüências, também devemos considerar que na ausência de um fundamento, o mundo não é determinado por nada. Tal afirmação exibe uma realidade em que o homem não pode responsabilizar circunstância nenhuma pelo que ele se tornou.

“Será que, no fundo, o que amedronta na doutrina que tentarei expor não é o fato de que ela deixa uma possibilidade de escolha para o homem? (...) O que as pessoas, obscuramente, sentem, e que as atemoriza, é que o covarde que nós lhes apresentamos é culpado por sua covardia. O que as pessoas querem é que nasçam covardes ou heróis”.

Na total ausência de princípios, é extremamente espinhoso falar em juízo, pois a perspectiva existencialista não nos permite estabelecer quaisquer parâmetros para a justiça. Sobre isso, Sartre comenta que mesmo sem princípios a priori, é possível julgar, por exemplo, considerando como de má-fé toda tendência a desculpar-se recorrendo ao determinismo ou às paixões. Logo, quando o homem age de má-fé, o faz por escolha, e não por coerência, e embora este não possa ser julgado moralmente, podemos afirmar que comete um erro.

Os juízos morais também são possíveis uma vez que a liberdade quer a si mesma, ou seja:

“os atos dos homens de boa fé possuem como derradeiro significado a procura da liberdade enquanto tal (...) e querendo a liberdade, descobrimos que ela depende integralmente da liberdade dos outros, e que a liberdade dos outros depende da nossa (...) sou forçado a querer, simultaneamente, a minha liberdade e a dos outros; não posso ter como objetivo a minha liberdade a não ser que meu objetivo seja também a liberdade dos outros.”

Temos, portanto que, o agir que não tem por fim a liberdade do outro não pode ser livre em si mesmo.

5. Conclusão

O existencialismo é apresentado por Sartre como a doutrina que torna a vida humana possível, no sentido em que o homem é o único responsável pelo que ele é. Vimos que responsabilizar uma natureza metafísica ou um cair num determinismo é uma atitude de má-fé. O homem é um ser-aí, ou seja, está lançado no mundo, angustiado em virtude da sua responsabilidade perante a humanidade, totalmente desamparado e sozinho e desesperado, porque somente pode contar com aquilo que depende de sua vontade.

O existencialismo oferece um riquíssimo caminho para se pensar questões atuais, como os problemas relacionados ao meio ambiente, responsabilidade diante da exclusão social e outros problemas ligados à ética e ao direito.

6. Referência Bibliográfica

SARTRE, Jean-Paul; GUEDES, Rita Correia (Trad.) L’Existentialisme est un Humanisme, Les Éditions Nagel, Paris, 1970.



[1] entia non sunt multiplicanda praeter necessitatem